Os maus-tratos em idosos é um problema crescente que, embora nem sempre tão discutido como a violência contra mulheres, crianças e minorias, afeta profundamente a sociedade. A Sensicare convidou Micaela Jorge, Comissária e Conselheira para a Igualdade da Câmara Municipal de Paços de Ferreira, para nos explicar a importância da consciencialização no combate à violência e abandono de idosos, e como podemos identificar e ajudar vítimas em perigo.
A dimensão da violência contra idosos
Quando falamos em crimes violentos, pensamos em agressões contra mulheres ou abusos sexuais, verdadeiros flagelos sociais que assombram Portugal. Não podemos, no entanto, descurar a realidade da violência contra os idosos e do seu abandono. Este tipo de crime tem tendência a passar mais despercebido, precisamente por ser muitas vezes silencioso e incidir sobre uma população menos visível.
Na verdade, a violência contra idosos aumentou – ainda que com algumas variações – de forma preocupante ao longo da última década. Segundo a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), só em 2023 foram registadas 1671 vítimas idosas, um aumento de 9,4% em relação ao ano anterior. Isto equivale a cerca de quatro vítimas por dia.
A violência contra idosos afeta principalmente a faixa etária entre os 65 e os 74 anos, e tem também uma interseção significativa com a violência de género, uma vez que a maior parte das vítimas (cerca de 75%) são mulheres. Muitos casos envolvem violência contínua, e os agressores são frequentemente os próprios filhos (29,1%) ou os cônjuges.
Para a Organização Mundial de Saúde, o aumento destes números poderá ser explicado pela quebra de laços entre gerações e pelo enfraquecimento dos sistemas de proteção social, que têm cada vez menos capacidade de resposta. É uma realidade trágica e que exige reflexão social e política.
Como identificar situações de maus-tratos em idosos?
Embora muitas situações de violência sobre idosos aconteçam no contexto familiar, este problema ultrapassa as portas da residência, estendendo-se às instituições de cuidado e até à via pública. A população idosa é vista como vulnerável e está exposta a diferentes formas de abuso para as quais devemos estar alerta. Podemos distinguir entre:
- Abuso físico: qualquer ato que cause dor física, incluindo agredir, empurrar, ou forçar a pessoa idosa a fazer uma atividade que não quer ou não consegue cumprir
- Abuso emocional: são os comportamentos que causam sofrimento psicológico, como a humilhação, as ameaças, ou o isolamento social e o controlo total sobre a vida do idoso, retirando-lhe autonomia
- Negligência: é uma forma de abuso por omissão, em que o cuidador não garante ao idoso os cuidados essenciais necessários ao seu bem-estar, como uma alimentação completa, higiene, cuidados médicos, etc.
- Abuso financeiro: refere-se ao uso indevido da propriedade da pessoa idosa, seja através de roubo, de fraude, ou de venda dos seus pertences sem autorização
- Abuso sexual: atos sexuais não consensuais, aproveitando a vulnerabilidade da pessoa idosa para a forçar à realização de atos sexuais
Quais os sinais comuns de abuso?
Os sinais de maus tratos dependerão também do tipo de abuso, mas há alguns indícios comuns a que podemos estar atentos.
No caso dos abusos físicos, o surgimento de lesões sem uma explicação óbvia – especificamente contusões, fraturas ou queimaduras – pode ser motivo para soar o alarme. É também importante questionar mudanças de peso significativas, a falta de higiene, ou um ambiente doméstico descuidado e sem condições adequadas.
No capítulo emocional, a pessoa idosa pode demonstrar sinais de desconforto junto de um cuidador ou familiar responsável pelos abusos, sendo o isolamento social - o afastamento súbito do seu grupo de amigos ou da família - outro motivo relevante de preocupação.
As situações de abuso financeiro manifestam-se geralmente em mudanças inexplicáveis, seja através de gastos excessivos em bens sem relevância direta para a pessoa idosa, ou mesmo na falta de dinheiro ou de recursos para necessidades básicas. A manipulação de documentos financeiros, como os testamentos ou o acesso às contas bancárias, é também uma via comum de abuso financeiro, frequentemente através de assinaturas falsificadas ou aproveitando o declínio cognitivo do idoso.
Os sinais de abuso sexual são comuns ao resto da população, e são habitualmente detetados por profissionais de saúde que identificam lesões genitais ou doenças sexualmente transmissíveis. O abuso sexual pode também motivar um comportamento sexual inapropriado na vítima, ou um desconforto a abordar o assunto.
Muitos destes sinais não indicam necessariamente uma situação de maus-tratos, podendo ser explicados por outros problemas e alterações típicas do envelhecimento. É importante, contudo, reconhecer a necessidade de investigar mais a fundo e procurar ajuda junto das autoridades competentes.
Como podem os idosos prevenir os abusos?
Há algumas medidas de prevenção simples que as pessoas idosas podem pôr em prática para reduzir a sua vulnerabilidade:
- Não circular com muito dinheiro vivo, mantendo a pensão na conta bancária e levantando apenas um valor razoável para os seus gastos diários;
- Na rua, evitar o uso de malas de ombro que são facilmente arrancadas pela força, preferindo uma carteira de bolso;
- Manter uma vida social ativa, visitando amigos, recebendo-os em casa, e participando em atividades junto da comunidade local, para se manter sempre acompanhado/a;
- Não divulgar contatos pessoais, não abrir a porta e rejeitar abordagens de pessoas desconhecidas;
- Ao assinar papéis ou tratar de burocracias, fazer-se acompanhar de alguém de confiança a quem possa pedir aconselhamento;
- Manter um telemóvel sempre por perto;
- No caso de se sentir vítima de alguma forma de abuso, é importante não ter vergonha e procurar apoio junto de alguém de confiança (ou, no caso de uma situação de perigo imediato, gritar por ajuda!)
- Poderá denunciar a situação e pedir apoio ao médico de família, à Polícia, ao Gabinete de Apoio à Vítima da APAV mais próximo, à Linha Nacional de Emergência Social, ao Magistrado do Ministério Público junto do tribunal, à Junta de Freguesia, à Câmara Municipal, ou aos cuidadores (por exemplo, apoio domiciliário).
A importância da conscientização
À população não-idosa, cabe reexaminar as suas atitudes em relação ao envelhecimento e ao estatuto e papel das pessoas idosas. Se a violência contra a população idosa passa tão despercebida, é porque estas pessoas ficam muitas vezes esquecidas pelos amigos, vizinhos e familiares, que naturalizam a perda de autonomia em idades avançadas e ignoram sinais de maus-tratos. É importante tratarmos as pessoas idosas de forma a dar-lhes confiança para denunciarem situações de violência e pedirem ajuda. Ao nível institucional, é também necessário um trabalho articulado entre as várias entidades da justiça, saúde e segurança social, e as organizações/instituições que apoiam estas vítimas.
Não compactue. Se sentir que está a ser vítima, ou se assistir a situações de abusos, denuncie. Pode fazê-lo de forma anónima.
Contatos úteis de Apoio à pessoa idosa:
Associação Portuguesa de Apoio à Vítima – 116 006
Linha Nacional de Emergência Social – 144
Guarda Nacional Republicana – contacte o posto da área da sua residência.
Micaela Jorge - Comissária e Conselheira para a Igualdade